sábado, 10 de julho de 2010

Cinema Pornô

Tese de antropóloga colombiana vira livro
que revela os bastidores do sexo pornô no Brasil

Bety Orsini

Tudo indica que a entrevista mais inquietante da antropóloga María Elvira Díaz-Benítez aconteceu num set de filmagem pornô em São Paulo há dois anos. Na tentativa de entrevistar um ator nu que estaria viajando dois dias depois para a Europa, ela se viu obrigada a conversar com ele ali mesmo porque a agenda do rapaz estava lotada.
Radicada no Brasil há sete anos anos, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp, María Elvira, de 34 anos, autora do recém-lançado "Nas redes do sexo - Os bastidores do pornô brasileiro", com prefácio do antropólogo Gilberto Velho, teve que superar suas limitações para coletar o material necessário para a tese de doutorado que defendeu no Museu Nacional (UFRJ). Como na entrevista com o tal ator nu, homem de formas exuberantes e jeito sensual, ocorrida antes da filmagem, quando o pênis dele estava completamente rígido e o Adônis necessitava se masturbar constantemente para não perder a excitação.
- Essa vivência mostrou como era importante eu me livrar de todos os meus preconceitos para uma pesquisa envolvendo práticas sexuais. Porque uma coisa é falar sobre o assunto, outra é estar ali interagindo. Foi a partir daí que senti o quanto o sexo mexe com questões morais guardadas em nosso íntimo.
Mas quando percebeu que tudo aquilo fazia parte da rotina de trabalho do ator, ela ficou mais tranquila.
- Eu estava trabalhando, ele também. E a partir do momento em que compreendi que o sexo era o material de trabalho desse universo, não tive maiores desafios - explica a antropóloga, lembrando que a espetacularização da sexualidade e a aparente abertura dos costumes não significam, contudo, que estamos diante do fim da obscenidade.
Quando souberam do tema escolhido por María Elvira, parentes e amigos insistiram para que ela tomasse cuidado com esses atores, atrizes, recrutadores, diretores pornôs e até potentes dublês de pênis.
- No início, esses alertas me fizeram ter reservas com as pessoas, mas durante a pesquisa percebi que elas não são tão diferentes de nós, são gente como a gente. Fiz até boas relações. E, assim, modifiquei minha maneira de enxergar essas pessoas.
Mesmo tentando parecer invisível, quando estava observando o trabalho nos sets de filmagem, María Elvira passou por outras saias-justas. Por exemplo, quando duas atrizes que participariam de uma cena lésbica caminhavam nuas pelo set e uma delas se trancou no banheiro para fazer sua higiene íntima diante do olhar indiferente de uma equipe composta por seis homens. Como as paredes eram de vidro, os homens podiam observar tudo, apesar de não demonstrarem nenhum tesão. Depois de algumas horas de filmagem, María Elvira teve vontade de fazer xixi.
- Eu estava com vergonha porque as paredes do banheiro eram transparentes, mas não teve jeito. E assim, quando vi que não tinha ninguém perto entrei no banheiro e estava quase terminando quando apareceu o motorista da equipe. Ao me ver, tapou os olhos com as mãos e saiu rápido, pedindo mil desculpas.
Quando decidiu pesquisar sobre pornografia, María Elvira não imaginou que seria profundamente modificada por esse universo cheio de vergonhas. Seu livro é o resultado da primeira pesquisa sobre pornografia feita no Brasil baseada na observação participante. Mas o que é observação participante? Trata-se de um método antropológico no qual o pesquisador convive com as pessoas envolvidas, participando do cotidiano. A maioria dos entrevistados mora em São Paulo, onde foi feita a pesquisa de campo.
- São Paulo é a cidade brasileira que tem o maior número de produtoras e distribuidoras do gênero - explica a antropóloga, que organizou a coleção "Prazeres dissidentes" (Garamond/Clam) e se interessa principalmente pelas relações étnico-raciais, gênero, pornografia e práticas sexuais dissidentes, como o sadomasoquismo, a pedofilia e a zoofilia.
Mas quem são as pessoas que transitam por este universo? De onde elas vêm? Por que fazem esse tipo de trabalho?
- São pessoas como nós, com a diferença de que trabalham nesse mundo. E todas são bem diferentes entre si, têm vidas privadas, visitam os pais, são casadas, têm filhos. Algumas são católicas, outras da umbanda.
Entrevistado pela autora, o recrutador Zilio classifica os indivíduos que chegam às redes de produção pornô em quatro níveis: A, B elevado, B e C.
- No nível A estão pessoas que têm família, uma vida social razoável, uma casa, têm tudo, mas têm a fantasia de fazer algum tipo de coisa voltada para a pornografia - diz Zilio. - Eu já tive filhos de delegados, filhos de militar, filhos de médicos que fizeram filme. São pessoas escolarizadas até. Muitos fazem Educação Física, Direito, Administração, Jornalismo.
A autora também passeia por assuntos controversos. Como a migração de travestis para a Europa, o lugar das transexuais e das práticas bizarras nessas redes, o valor dos cachês. E explica que o uso da camisinha é o fator que mais altera os valores do cachê.
- Um ator experiente sabe que quando os valores oferecidos são mais baixos que R$ 500 por cena, o sexo naquele filme será feito com camisinha. Valores mais altos denotam uma ambiguidade em relação ao uso do preservativo. Geralmente, cachês acima de R$ 800 significam que o uso da camisinha está dispensado.
No caso do cachê maior está implícita uma noção de risco.
- A maioria dos atores que ficam famosos no pornô não usa camisinha, os produtores preferem.
Nesse mercado estigmatizado, os homens circulam mais à vontade. Ao contrário da maioria das mulheres, que insiste em dizer que faz pornô por dinheiro, como se isso tirasse o peso da promiscuidade. A antropóloga conta que a qualidade dos orgasmos femininos é celebrada por atores e diretores e as fazem se sobressair. E lembra do dia em que estava numa filmagem e uma atriz ejaculou de uma maneira tão abundante quanto um homem.
- O diretor ficou fascinado e quando perguntei se essa tinha sido a primeira vez que assistia a uma ejaculação feminina, ele respondeu que é raro, mas já tinha visto algumas. Mas que as mulheres têm vergonha de demonstrar para a câmera. Nesses casos, ele sempre diz: "O que é isso, gente, vergonha de quê? O homem é todo o contrário, ele quer mesmo é gozar" - conta María Elvira.
E conclui:
- Vivemos em um mundo de sexo e somos obrigados a falar dele.

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