sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O tempo gravado em meu corpo


Este é um conto que publiquei primeiro em doce de pandora (http://docedepandora.blogspot.com/), mas como ele trata do quanto a marcação do tempo pode ser gravada em nós e o quanto ela é criada, achei pertinente publicar o conto aqui.

Glauber é um nome comum escolhido pensando na palavra "glaube", que em alemão significa pensar, ich glaube = eu penso, então Glauber seria um pensador. Não significa que ele é dos melhores, ou pensa e chega a conclusões mirabolantes, mas questiona as coisas ao seu redor. A idéia é que cada um de nós é um "Glauber".

E lhes deixo com o conto...



O TEMPO DE GLAUBER


Havia algo que incomodava muito a Glauber, o tempo. O problema nem era tanto o passar do tempo, mas sim a contagem tão exata deste tempo. Não sabia dizer se era um progresso da humanidade, ou uma droga que ajuda a chegar mais rápido ao fim. A coisa estava tão complicada que praticamente não precisava mais de relógio, pois ele era programado como se fosse um relógio. Começou a refletir sobre isso depois que entrou no escritório às 10 horas e quando pensou que deveriam ser 10 e quinze, eram dez e quinze. Problema nenhum até ai, mas durante toda aquela semana percebeu que previa o tempo por margem de erro de no máximo dez minutos, sem olhar para o relógio. Percebeu que depois de certa hora, não conseguia mais dormir, mesmo aos finais de semana. O tempo estava tão contado e racionalizado que seu corpo já respondia sozinho. Quando seu ônibus atrasava um minuto, já sabia todas as implicações que isto lhe traria. Sabia tudo o que passaria. Desde chegar mais tarde em casa, até os minutos a menos, que necessitava deles sobrando para pegar o ônibus no horário.

“Problema nenhum em ser pontual”, disse Joyce sua amiga do escritório, quando Glauber havia contado a ela sobre este aparente problema. E ele se recordava de quando era pequeno, e não possuía noção alguma de tempo. As férias eram quando estava quente, mas no meio de todo aquele calor. E junto com as férias vinha o natal, então o verão era a melhor época do ano, podia tomar sorvete e banho de piscina, mas sempre separados por um intervalo de uma hora. Sempre ouvia “espere uma hora”. O que acontecia era que ficava perguntando inúmeras vezes para sua mãe, “já deu uma hora?”, e ela lhe respondia muitas vezes que não. Outras vezes preferia fazer outra coisa e quando se dava conta sua mãe já o chamava para tomar café. Sabia que sexta era o dia bom, não precisava fazer tarefa, e não ia para a aula no outro dia. Mas esperar uma semana era algo inimaginável para sua infância. Só tinha consciência de que o natal demorava muito mais para chegar do que a sexta-feira.

Na verdade nunca deu muita bola para o horário. Na escola era só seguir o fluxo. Se todos saiam para o recreio, ele também saia, se todos entravam de volta na sala ele também entrava. Mas aos seus quinze anos ganhou de presente um relógio. O regulou e o colocou no pulso. Começou a aprender a contar as horas, saber que perto das dezessete o trânsito virava um caos. Antes quando voltava para casa, saltava em algum ponto por perto e ia andando, chegaria lá. Depois começou a montar cronogramas com os melhores horários de ônibus para ele pegar. A coisa foi ficando tão brava que sabia as horas já automaticamente, até os minutos. Ficava mais pensando no tempo que estava passando, do que no que estava fazendo. Isso o agoniava.

A pergunta que se fazia desde que percebera isto tudo, era se os outros também eram assim tão mecânicos, ou ele era o “homem-do-tempo”? Isto o incomodava e muito. Ou tudo poderia ser só uma conseqüência da velhice. Mas descartou esta hipótese assim que leu um texto sobre o tempo na idade média. Ele falava sobre a medição de tempo. Ela era completamente inexata. Mal se possuía a noção de meia hora, era um luxo ter um relógio em sua cidade. Relógio como hoje, um em cada canto, era algo impensável. Nem se contava os anos direito, se dizia que nasceu no ano de tal santo, no mês de outro tal e no dia (ou tantos antes, ou tantos dias depois) de outro seguinte. “João da Antuérpia, filho de Pedro da Cornualha, nascido no dia de São Cosme, no mês da morte de Cristo, três dias antes do dia de São Paulo”, era assim que se apresentavam antigamente, lógico, os que se dizia valerem a pena apresentarem-se. E o que Glauber percebe era de que o tempo medido é a mais pura invenção dos homens. Se perguntava como deveria ser viver na terra selvagem, no meio de toda aquela imensidão, e não perceber que o tempo vai passando. Será que o meu cachorro sabe que está velho e logo vai morrer? Uma série de questões passaram por sua cabeça.

E quando tentou contar elas a Joyce, ela riu e perguntou o que ele usava, já que ela queria um pouco também. Fizera essa piada boba, e Glauber fingiu que brincava também. Mas tudo aquilo que pensava sobre o tempo ainda estava em sua cabeça.

Nenhum comentário:

Postar um comentário