Novos traços
Nos parcos minutos que restavam da hora do almoço gostava de ficar por ali na praça, escrevendo, às vezes lendo. Ansiava por esse instante. Na escrita, encontro a plenitude, nada mais importa.
A avistei de longe, num banco próximo, lendo, parecia tão menina. Espiei o título do livro, filosofia, hum... interessante. Devia estar fazendo trabalho de escola. Se não fosse o livro não a notaria. Voltei para o meu caderno.
Novo dia, e lá estava ela, novamente lendo. Estranho. Uma pequena curiosidade surgiu. Tentava escrever, mas meus olhos a procuravam. Olhava seus traços, seu prazer com a leitura. Sorria ao ler determinado trecho, marcava. Fechava o livro, os olhos e sorria. Que livro estava lendo?
E assim passei duas semanas, desviando o olhar de meu caderno, para olhá-la, mas sem coragem de me aproximar.
Mais uma semana, olhei ao redor e não a vi. Sentei-me, peguei meu caderno e dei continuidade a minha escrita, logo o mundo ao meu redor sumiu. Só eu e meu caderno. Alguém sentou ao meu lado, ergui os olhos e ali estava ela, seu cheiro me invadiu. Sem jeito volto meus olhos ao caderno, buscando proteção, mas não adianta, teimosamente eles voltam para ela. Deveria falar algo... Não sei o que falar! Idiota!
A hora passou rápido. No dia seguinte esperei ela sentar num banco e sentei ao seu lado. Sem coragem de falar coisa alguma, mas sentindo o seu cheiro. Que patético! Não acredito que isso está acontecendo comigo.
‘Não vai falar nada?’
Assustei-me ao ouvir sua voz. Continuei sem fala. Nem um oi gaguejado. Sorrindo, ela continuou:
‘Estás me observando há um tempinho, hoje sentastes do meu lado...’
‘E-eu...’ Ácida? Estaria debochando de mim?
‘Eu, vi você sempre lendo, chamou minha atenção.’
‘Livros, minhas fugas. Uma fuga necessária!’
‘Sim, uma fuga...’
‘Preciso ir, tchau.’
‘Tchau’
Como fui idiota, e ela foi embora. Sinto-me só. Por que achei que ela poderia caminhar ao meu lado? Deve estar rindo de mim. Ácida. Interessante, cada vez mais interessante.
Mais um dia, olho ao redor e não a vejo. Termina o horário do almoço, e nada.
Dois dias se passaram e ela sumiu. Só me resta voltar para minha solitária escrita. O que eu esperava? Volto ao meu caderno, três dias de rabiscos. Ei, acorde, você tem muitas histórias para contar! É isso aí. Minha caneta voltou a deslizar sobre o papel, as letras e palavras se formando, ganhando coerência em minhas frases. Fecho os olhos e sinto o prazer da escrita me tomar.
Chegou a sexta-feira, voltei aos meus instantes extasiados de escrita, a menina, uma vaga lembrança.
‘Oi’
Ao ouvir sua voz, prendi minha respiração. Que ridículo. Meio sem jeito respondi:
‘O-oi’
‘Me espera aqui, às cinco?’
‘Cinco?’
Ela sorriu de forma matreira, sorrindo.
‘Hum, hum. Cinco.’
Ela está de sacanagem. Devia rir, e dizer: ‘eu não, estás louca?’ Mas só saiu:
‘Tudo bem, espero.’
em beijá-la, tirar sua roupa, depois conversar. Ela percebeu? Será que pensa o mesmo? Não trabalhei, só enrolei, só pensava nela. Um beijo, não seria nada mal.
Cheguei na praça e sentei no banco. Cinco e cinco. Cinco e dez, e nada. Fiz papel de idiota, levei um cano. Deve estar em algum lugar com uma amiga me olhando e rindo de mim. Que raiva! Foda, isso. Cinco e quinze.
‘Oi, desculpa a demora.’
Devia xingar, mandar à merda. Mas, de mansinho, apenas disse:
‘Oi’
Ela sorriu pra mim, maravilhoso sorriso. Prendi a respiração de novo. E num tom meio malicioso:
‘Moro aqui perto, vamos lá pra casa?’
Casa? Estou sonhando? Entendendo tudo errado? Chegamos a um pequeno apartamento, um quarto, sala-cozinha. Poucos móveis, funcionais, obviamente desprezados. Muitos livros, sobre o sofá, na mesa, no chão, empilhados, espalhados. Estes sim, obviamente necessários. Tentava ler seus títulos. Mas ela se aproximou de mim, olhando nos meus olhos, exigindo minha atenção. Hipnotizante. Toca o meu rosto. Seus dedos suavemente deslizam pelo meu rosto. Não escondo minha surpresa, mas desta vez estou sorrindo. E, também toco o seu rosto. Olha pra mim maliciosamente e diz:
‘Pegue.’
Ofereceu-me uma caneta. Não entendi o que queria com aquela caneta.
‘Pra quê?’
‘Você escreve, certo?’
‘Sim, mas...’
Ela interrompe minha fala, ao tirar sua blusa e o sutiã. Parei, olhando seus seios, sua pele branca, linda. Sonho? Realidade?
‘Vem, escreve em mim.’
Não, delírio. Não acreditei no que ouvi. Desejo e medo. Segurei a caneta e me aproximei, toquei seu rosto, e com as pontas dos dedos desci até seu pescoço, seus seios. Minha caneta hesita, faltam palavras, sobra paixão. Ela se aproxima de mim, e me beija, ardentemente. Afasta-se e sorri.
‘O que tens a dizer sobre mim? Vem, escreve, não quero esperar mais.’
Deixo as palavras virem:
“Estou de passagem em teu corpo, uma viajem que ansiava, mas dela só imaginava o banal. Contrariando-me, ofereces teu corpo para que eu me inscreva nele. Tua pele branca recebe essas letras, incertas, traços incoerentes, trêmulos no gozo que se aproxima...”
Minha mão já não conduz a caneta, desliza sobre sua pele, tento vencer o tremor. Ainda não terminei a minha escrita, mas o desejo toma conta de mim. Beijo-a e tento abrir o botão de sua calça. Ela me afasta. Ofegante, fico sem entender.
‘Não.’
Não compreendo o seu não.
‘Quero tua palavra, quero você se revelando em mim. Agora, meu corpo é para tua escrita.’
Olho pra ela e não acredito. Não acredito como ela pôde ver tão profundamente o meu eu. Olho para a caneta em minhas mãos. Toco o seu rosto, que agora está ansioso, temeroso. Sorrio. Suavemente a acaricio, e beijo seus lábios. Volto ao seu corpo e continuo a escrever. Já não caminho só. Ela está ao meu lado margeando a vida. Encontrei a escrita plena. Ela me chama:
‘Olha pra mim.’
Olhei, e ali nos encontramos, cúmplices. Ela se aproxima e me beija, ofegante. Agora, é seu corpo que está trêmulo, impaciente. Suas mãos percorrem meu corpo, tiram minhas roupas e se livram do que resta de suas roupas. Sussurrando ela me diz:
‘Me leia.’
Carla Fernanda da Silva é historiadora e professora universitária. Publica o blog Autoficção: http://escritadesi.blogspot.com/, onde desenvolve a escrita ficcional de si, reside em Blumenau-SC.
Lindo! Como se eu pudesse aplaudir de pé! Por quê a gente treme e não fala a palavra certa, ou não fala? Descrever o começo do flerte da paixão para imaginar todo resto, faz o resto dispensar palavras.
ResponderExcluirSim, Ale...é lindo esse conto...lindo.
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